Lá vão pelo caminho a mãe e a criança, que vai sendo arrastada pelo braço - segurar pelo braço é mais eficiente que segurar pela mão.Vão os dois pelo mesmo caminho, mas não vão pelo mesmo caminho. Blake dizia que a árvore que o tolo vê não é a mesma árvore que o sábio vê. Pois eu digo que o caminho por que anda a mãe não é o mesmo caminho por que anda a criança.
Os olhos da criança são como borboletas, pulando de coisa em coisa, para cima, para baixo, para os lados, é uma casca de cigarra num tronco de árvore, quer parar pra pegar, a mãe lhe dá um puxão, a criança continua, logo adiante vê o curiosíssimo espetáculo de dois cachorros num estranho brinquedo, um cavalgando o outro, quer que a mãe veja, com certeza ela vai achar divertido, mas ela, ao invés de rir, fica brava e dá um puxão mais forte, aí a criança vê uma mosca flutuando inexplicavelmente no ar, que coisa mais estranha, que cor mais bonita, tenta pegar a mosca, mas ela foge,seus olhos batem então numa amêndoa no chão e a criança vira jogador de futebol, vai chutando a amêndoa, depois é uma vagem seca de flamboyant pedindo pra ser chacoalhada, assim vai a criança, à procura dos que moram em todos os caminhos, que divertido é andar, pena que a mãe não sabe andar por não ter os olhos que saibam brincar, ela tem muita pressa, é preciso chegar, há coisas urgentes a fazer, seu pensamento está nas obrigações de dona de casa, por isso vai dando safanões nervosos na criança... se ela conseguisse ver e brincar com os brinquedos que moram no caminho, ela não precisaria fazer análise...
A mãe caminha com passos resolutos, adultos, de quem sabe o que quer, olhando pra frente e para o chão.Olhando para o chão ela procura as pedras do caminho, não por amor a Drummond, mas para não dar topadas, e procura também as poças de água, não porque tenha se comovido com o lindo desenho do Escher de nome Poça dágua, uma poça de água suja na qual se refletem o céu azul e os ramos verdes dos pinheiros, ela procura as poças pra não sujar o sapato. A pedra do Drummond e a poça de água suja do Escher os adultos não vêem, só as crianças e os artistas...
A mãe não nasceu assim. Pequenina, seus olhos eram iguais ao do filho que ela arrasta agora. Eram olhos vagabundos, brincalhões, que olhavam as coisas para brincar com elas... Mas aí a mãe foi sendo educada, numa caminhada igual a essa, sua mãe também a arrastava pelo braço, e quando ela tropeçava numa pedra ou pisava numa poça de água, porque seus olhos estavam vagabundando por moscas azuis e cachorros sem-vergonha, sua mãe lhe dava um safanão e dizia: "Olha pra frente, menina!"
"Olha, pra frente!" Assim são os olhos adultos. Olhos não são brinquedos são limpa-trilhos. Servem para abrir caminhos na direção do que se deve fazer. Assim eram os olhos daquela minha amiga que os usava pra cortar cebola sem cortar o dedo, até que, um dia, o olho que morava dentro de seus olhos se abriu e ela viu a beleza maravilhosa do vitral translúcido que mora nas rodelas de todas as cebolas, e ela tanto se espantou com o que via que pensou que estava ficando louca...
Coitados dos adultos! Arrancaram os olhos vagabundos e brincalhões das crianças e os substituíram por olhos ferramentas de trabalho, limpa-trilhos. Assim eram os olhos daquele meu amigo médico: não viam nem as orquídeas nem as árvores que estavam dentro de seu consultório. Seus olhos eram escravos do dever. E ele não percebia que as coisas ao seu redor eram brinquedos que pediam ao seus olhos: "Brinquem comigo! É tão divertido! Se vocês brincarem comigo, eu ficarei feliz, e vocês ficarão felizes..." (Rubem Alves)
Veja o mundo num grão de areia,
veja o céu em um campo florido,
guarde o infinito na palma da mão,
e a eternidade em uma hora de vida!
(William Blake)